quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

O PRAZER DA RELEITURA

Por Cláudio Munhoz

Quando tive a idéia de elaborar uma relação de livros de ficção que marcaram a minha vida, não imaginava a agitação que ela provocaria em meu espírito. Um pouco afastado, nos últimos tempos, de um hábito prazerosamente cultivado desde o limiar da adolescência, a simples evocação desses títulos e a recordação das emoções vividas ao longo de suas páginas fizeram despertar em mim o desejo de promover a abertura de uma temporada de releituras.

Em verdade, a composição dessa lista, colocada à disposição dos amigos leitores no nosso PONTO DE ENCONTRO, foi resultado de um exercício de memória, sem que houvesse, de minha parte, uma intenção deliberada de estabelecer qualquer critério de classificação. A rigor, cada título traz em si a energia que lhe é peculiar; e a expansão dessa energia define a extensão de seus limites no tempo e no espaço.

É interessante observar que nesse contexto particular de seleção o conceito universal de Clássico da Literatura se dilui em maior ou menor grau. Nesse sentido, o próprio leitor passa ter a prerrogativa de estabelecer novos parâmetros de conceituação do termo, tomando como referência os títulos por ele listados. E é essa condição especial de clássico, de caráter estritamente pessoal, que seduzirá o leitor a tirar da prateleira um desses livros, levando-o a empreender uma nova e fascinante viagem de exploração por terras anteriormente descobertas.

A releitura de um livro tem o poder mágico de produzir no leitor uma sensação singular, ao conduzi-lo por um caminho que ao mesmo tempo lhe oferece a perspectiva de dois mundos distintos, porém, caprichosamente sobrepostos: enquanto um preserva as impressões captadas no transcorrer da primeira incursão, o outro abre a possibilidade de se perfazer o mesmo percurso a partir de um ponto de vista diferente, determinado pelo acúmulo de experiências e vivências. Em ambos os casos, a motivação do leitor em reeditar sua aventura está na expectativa de um confronto entre as novas e as antigas emoções, ocasião que lhe permitirá avaliar com mais precisão seu próprio grau de evolução através dos anos. E é nessa conjugação de valores que a releitura proporcionará ao leitor uma fonte inesgotável de encantamento e prazer.

domingo, 27 de janeiro de 2008

A ALMA IMORAL

Por Cláudio Munhoz

Um dos pontos altos da temporada teatral de 2007 foi, sem dúvida, a peça A Alma Imoral, um monólogo de Clarice Niskier, adaptado por ela do livro homônimo de Nilton Bonder. O texto da peça nos induz a uma reavaliação de princípios e valores que permeiam a vida em toda a sua dimensão, a partir da reflexão sobre conceitos de corpo e alma, certo e errado, traidor e traído, obediência e desobediência, e por aí vai.

O monólogo está estruturado em torno de histórias do Velho Testamento, de parábolas de sabedoria judaica e de informações históricas e científicas, entrelaçando temas como religião e biologia. Seu objetivo é levar-nos a meditar sobre o caráter da nossa missão, que vai além do sentido restrito da procriação, e nos oferece a possibilidade de vivermos a transcendência de nós mesmos.

“Não há tradição sem traição; não há traição sem tradição”, afirma Nilton Bonder, através da voz de Clarice. Segundo ainda o autor do livro, as tradições trazem o poder das instruções do passado. Mas a necessidade de transcendência, que por vezes é vista como "traição", está ligada ao princípio de continuidade da espécie. Nesse sentido, pode-se inferir que o conceito de alma, como força "traidora", traz o poder das instruções do futuro, como a colaborar em larga medida para a evolução da espécie.

Diante do espelho da consciência, materializado pela presença sóbria e elegante de Clarice no palco, experimentamos a sensação de projetar para o mundo externo as complexidades do mundo interior. Por conseguinte, o texto da peça converte-se num olhar arguto, através do qual nos defrontamos com a nudez tácita da própria alma. Mas afinal, em que consiste a imoralidade da nudez? Bem, a intenção de Clarice com esse trabalho magnífico é a de mobilizar o pensamento e a emoção do espectador na busca da resposta, cabendo a ele a árdua tarefa de desvendar tão instigante enigma.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

COLUNA ATELIÊ LITERÁRIO (Edição No. 2)

O NASCIMENTO DE UMA HISTÓRIA

Por Cláudio Munhoz

Muitos devem se perguntar como nasce a idéia de um romance na mente de um escritor. De uma só tacada? Aos pedaços, como num jogo de quebra-cabeça? De que maneira as tramas centrais e periféricas são construídas? E os personagens, heróis, vilões e os menos favorecidos que povoam o mundo de uma obra ficcional, de onde vêm? Quem são, na verdade?

É bem provável que as respostas a essas e outras tantas indagações tenham muitas versões. Cada escritor naturalmente possui um método bem particular para conceber e desenvolver um enredo e as criaturas que nele se movimentarão. Uns escrevem por impulso, num processo quase intuitivo; outros já preferem uma construção mais sistemática. Seja como for, tão excitante quanto a leitura de um bom romance é imaginar o que se passou na cabeça daquele autor ao longo de todo o processo criativo.

Não sei se todos os escritores estariam dispostos a abrir espontaneamente as portas de seu mundo secreto, ou mesmo quando instigados por algum interlocutor. Todavia, em resposta ao que ninguém jamais me perguntou, tenho a revelar que, antes de me sentar diante do computador para dar início ao desenvolvimento de um romance, conto, roteiro ou peça, a história passa por um longo estágio de maturação mental. Em primeiro lugar, surge a idéia da trama principal, com as devidas aberturas para possíveis desdobramentos. Nesse momento, pouco a pouco os personagens começam a desembarcar em seu novo mundo, em atendimento a uma convocação imperiosa. Alguns chegam quase prontos, outros na forma de um embrião; mas todos passam por um período de incubação, ocasião em que lhes são modelados os atributos físicos e psicológicos. Em seguida, ou concomitantemente, o mundo onde a história se desenrolará e o tempo em que se situará são definidos ou especialmente construídos de tal modo que possam atender às necessidades e exigências para o bom andamento da trama.

Terminada essa etapa preliminar de construção do enredo, dos personagens e do cenário, tem início a fase de minha ambientação ao novo meio físico. É para lá que secretamente me mudo de mala e cuia e passo boa parte do meu tempo a viver as emoções e as sensações daquele ambiente, absorvendo os elementos que a sua atmosfera produz. Relaciono-me com os personagens na intimidade a ponto de sentir-lhes os movimentos, desejos, frustrações e toda a sorte de experiências. Junto com eles, enfim, participo ativamente de todos os fatos e eventos, como um sinal inequívoco de cumplicidade e solidariedade.

Daí para frente, a conversa muda de figura. É hora de me sentar diante do computador e começar a escrever a história. O resultado? Só Deus sabe. Sei apenas que a jornada é longa e imprevisível, apesar de todos os preparos e cuidados.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

O ELEMENTO POÉTICO NAS LETRAS DE MÚSICAS

Por Cláudio Munhoz

Para entrar no mérito deste assunto, um tanto controverso, por sinal, uma pergunta se faz necessária: devemos pretender que as letras de músicas guardem em sua estrutura as características e os elementos de um poema?

A princípio, uma letra de música para soar agradável aos ouvidos da alma não precisaria necessariamente possuir tais atributos, porquanto a música, como qualquer outra forma de expressão, tem a sua linguagem própria. Em regra, a evolução melódica de uma composição estabelece a freqüência em que o autor deverá sintonizar seu texto para a elaboração da mensagem. A questão, nesse caso, seria mais de sensibilidade, competência e domínio da linguagem musical para se obter bons resultados.

Muitos poetas de ofício costumam se aventurar pelas trilhas sinuosas da música com extrema habilidade e bom gosto, e nem por isso conseguem ou se propõem a produzir poemas na acepção do termo. No entanto, a proposta de musicar um poema, por vezes, pode alcançar resultados surpreendentes, quando a fusão das duas formas de linguagem se dá de um modo harmonioso, como, por exemplo, ocorreu com Motivo, de Cecília Meireles, musicado por Fagner.

A presença do elemento lírico, em maior ou menor grau, na concepção de um poema pode nos induzir a pensar que a música permeia e influencia o ato de criação poética, o que nem sempre corresponde à realidade. Se Cecília Meireles fez transbordar musicalidade em sua obra poética, João Cabral de Melo Neto tratou de negar tal premissa de forma enfática.

Todavia, a esse respeito, Caetano Veloso, na canção Outro Retrato, do CD Estrangeiro, apresenta, em tom confessional e intimista, seu ponto de vista, a partir de uma bem-humorada menção a dois importantes personagens do cenário cultural brasileiro responsáveis por sua formação musical e poética, ao confrontar o que o poeta João Cabral pensava sobre a música com a posição do músico João Donato em relação à poesia (“Minha música vem da música da poesia de um poeta João que não gosta de música. / Minha poesia vem da poesia da música de um João músico que não gosta de poesia”).

E é justamente nesse processo de depuração do “eu” artístico, posto a nu em Outro Retrato, que Caetano Veloso coloca o debate um tom acima: a afirmação da imagem do músico-poeta e do poeta-músico perante sua obra é o resultado de uma busca incessante pelo ponto de convergência entre a música e a poesia, em cuja dimensão habitam os poucos iluminados, aqueles que no desenvolvimento de sua arte alcançaram o altar da excelência artística.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

COLUNA ATELIÊ LITERÁRIO

BEM-VINDOS AO MEU ATELIÊ

Por Cláudio Munhoz

Para celebrar a estréia desta coluna semanal, que tem como proposta convidar o público leitor a um agradável passeio pelos jardins secretos da criação literária, tomei a iniciativa de abrir as portas do meu ateliê e transformá-lo num aconchegante ponto de encontro virtual.

A idéia de batizar minha estação de trabalho de Ateliê Literário surgiu em 2004, durante uma mostra individual de um querido amigo, o artista plástico Lauro Müller. Esse ato aparentemente simbólico, na verdade, foi determinante para que eu me lançasse à descoberta de novas rotas. Não por acaso, naquele período, meu processo criativo passava por uma fase de profundas transformações. O contato mais intimista com outras formas de expressão artística possibilitou-me uma viagem fantástica a um mundo de múltiplas faces, do qual pude extrair novos e importantes elementos, conceitos e valores. E nesse sentido, a estética transcendente das obras de Lauro Müller e o efeito que suas pinturas abstratas e instalações produziram em meu espírito contribuíram substancialmente para o alargamento de minha capacidade de percepção e de criação poética, abrindo, assim, caminho para excitantes incursões no campo do experimentalismo.

Num contexto puramente espiritual, o Ateliê Literário não está circunscrito ao espaço físico que ocupa. Ele vai muito além: avança pelas plagas infinitas e imponderáveis do plano mental e faz transbordar em minha alma sua energia vibrante e difusa. Sem dúvida, o trabalho é fonte de desenvolvimento e de geração de riqueza; mas o melhor tesouro que dele se pode guardar é o prazer da realização, uma sensação de felicidade permanente, própria daqueles que, com humildade e entusiasmo, encontram nas terras férteis da inspiração criadora uma razão para renovar-se e amar a vida intensamente.

Sejam bem-vindos ao meu Ateliê Literário!

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

REFLEXÕES DE UM ESCRITOR (1)

Por Cláudio Munhoz

Numa dessas reflexões de final de ano que costumamos fazer diante do espelho da alma, tive uma visão reveladora: por detrás daquela imagem do romancista e poeta em processo de transformação estava o fantasma do leitor.

A verdade é que passei boa parte da minha vida mergulhado em livros. Cresci seduzido pelo silencioso e aconchegante canto das letras e das idéias; e cedo me vi a percorrer caminhos múltiplos, a visitar lugares excitantes e a conhecer pessoas encantadoras. Sentado na velha poltrona, ou preguiçosamente esparramado na cama, sentia-me senhor de todos os mundos e do tempo.

Na extensa lista de títulos visitados e percorridos estão obras de diversos gêneros, a maioria localizada entre os séculos XVIII e XIX. Houve um tempo em que esse fascínio por épocas mais remotas chegou a erguer um véu escuro sobre as novidades do mundo da literatura contemporânea.

Certo dia, porém, quando o leitor que havia em mim revelou o desejo de levantar-se e assumir uma identidade mais ousada, qual seja, a de escritor, não foi o passado que lhe deu abrigo. Na verdade, o presente era a sua morada; e o futuro, seu destino.

Naquele momento, percebi que, mais do que a evocação de antigos espectros, foram os elementos vivos do nosso tempo que deram forma ao conteúdo que começava a transbordar: o cinema a determinar o ritmo e o colorido da prosa, e a pintura abstrata a abrir clareiras para novas experiências no campo da poesia.

Assim revela-se a arte: pura e sensitiva. E na transcendência da criação, todas as possibilidades são caminhos retos que conduzem o artista aos braços do Criador Maior.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

A POESIA DO INCÔMODO DE ORIDES FONTELA

Por Cláudio Munhoz

Em meados de 2006, a editora Cosac Naify, em parceria com a 7Letras, ofereceu aos amantes da poesia um brinde especial, ao publicar Poesias Reunidas (1969 – 1996), de Orides Fontela (1940 – 1998).

Lembro-me que comecei a ter contato com a obra de Orides Fontela em 1996, por ocasião do lançamento de sua última publicação, Teia, editada pela Geração Editorial. Curiosamente, constatei que uma das vertentes do trabalho que venho desenvolvendo como poeta guarda estreita afinidade com a proposta de Orides, qual seja a de buscar a amplitude e a profundidade da criação através de poemas concisos.

Formada em filosofia, e lutando com extrema dificuldade para sobreviver como professora do ensino fundamental e bibliotecária, essa paulista de São João da Boa Vista deixou-nos uma obra poética de grande valor literário, que encontrou na crítica especializada, tanto no Brasil quanto no exterior, o merecido reconhecimento.

O temperamento intempestivo de Orides, que lhe custou irreparáveis desavenças, principalmente com os amigos muito próximos, talvez refletisse em grande medida esse sentimento ambíguo que lhe dilacerava a alma e impregnava-lhe os versos curtos de uma forma contundente e fria, porém, não menos sensível e perspicaz, provocando no leitor uma estranha sensação de incômodo.

Sem dúvida, a iniciativa da Cosac Naify e da 7Letras veio em boa hora. Em Poesias Reunidas, a intenção de mergulhar no universo poético de Orides Fontela não pode ser reduzida a um simples ato de constatar e reconhecer a grandeza de sua obra. Mais do que isso, deve ser ampliada no desejo de tentar entender um pouco mais a alma de uma poetisa atormentada e solitária, que morreu praticamente na miséria, abraçada à riqueza que a sua poesia produziu.

A ARTE E A VIDA

Por Cláudio Munhoz

A arte imita a vida, ou seria o contrário? Em verdade, ambas se fundem e se confundem. E sendo parte da criação, podemos deduzir que a vida é a arte em si mesma. Há aqueles que afirmam ser possível viver sem a arte. No entanto, a vida sem arte é vazia, fria, triste e solitária. É como se não existisse. Passa ao largo de tudo quanto se faz belo para encantar nossos olhos. E quem tem olhos de ver (com alma), veja, porquanto elevar a vida à condição de arte é louvar e dignificar a obra do nosso Criador.